- Jornal Poiesis
A vitalidade do encontro com as artes

Camilo Mota
“Sem a música a vida seria um erro”, postulava Nietzsche. E o filósofo ainda arremataria em outra passagem: “Temos a arte para não morrer da verdade”. Essas falas me vieram à mente durante algumas reflexões antes de participar de um sarau. Por que, afinal, estamos lendo romances, falando poesia, escrevendo, pensando e sentindo? E o que tanto mexe conosco quando nos envolvemos com a literatura e tantas outras expressões artísticas, seja o cinema, o teatro, a pintura? Eu diria que é a nossa propensão ao movimento, à transmutação, ao inconformismo. Daí o medo que muitos têm (principalmente os que buscam e se fixam no poder instituído: políticos, religiosos, entre tantos outros) de perder o controle, de delirar, de sair da formatação mais fácil que a razão nos aprisiona.
Sinto de maneira cada vez mais nítida que a literatura é um ser vivo, cada obra é uma expressão de uma origem (o artista, ou alguma outra força social que lhe constitui) e ao mesmo tempo um fluxo independente dela e que ganha contornos de afecção quando alcança outro ser em movimento (o leitor). Tanto o texto quanto quem o lê se transformam, e às vezes se transmutam, se redefinem, pois que ambos são forças de vida. Tudo o que é vivo tem a capacidade de se modificar nos encontros e criar novo devir, redirecionar forças, sabe-se lá em que direção.
Quando eu me relaciono com o meu cachorro, há sempre uma mudança em mim ou nele, de acordo com a maneira com que interagimos. Posso descobri-lo sempre diferente a cada dia, mesmo que repita alguns padrões. E eu mesmo posso ver os meus padrões que são duros ou flexíveis quando estou em relação. Do mesmo jeito é o caminho que se abre diante de um texto. Há uma captura que conecta o signo escrito a alguma partição do meu ser, seja o vivido, seja o por viver. Numa obra de arte, há sempre o inusitado, o espanto, o risco de pular num abismo, ser arrastado num ciclone, ou simplesmente boiar num manso lago de águas calmas. Mas isso tudo é muito bom quando nos permitimos o envolvimento pelo viés estético e não apenas pelo senso crítico ou intelectual, que também é bom, mas tem um sabor diferente, menos intenso. Ler um livro intelectualmente é uma força intencional, direcionada, calculada, formatada. Serve-nos, claro, para percebermos as formas, algumas relações, sentidos, eixos, traços... Mas a leitura estética é intensiva, não precisa de descrições, explicações ou regras. Flui no sentido dos sentidos, das sensibilidades, das linhas que nos constituem, do afloramento daquilo que nos habita enquanto seres em movimento no tempo, e por isso tão transformadora, porque exige de nós um bom pedaço de vida. Porque há textos que nos mordem, nos arranham, e também lambem e acariciam. Essa literatura é um bicho. E bichos assustam muita gente.
A arte é, pois, esse convite à vida, ao sair do lugar e se movimentar, como um nômade que aprecia cada paisagem que vivencia. E que importância tem isso? Charles Baudelaire, num poema em prosa, responde: “Mas que importa o que pode ser a realidade dada fora de mim, se me fez viver, se me fez sentir o que sou e o que sou?”. E isso não tem nada de mágico ou transcendental. Está na raiz de todo encontro que possamos ter com as formas de vida. E a arte é uma forma de vida em constante movimento e nos toca e nos comove. E é desta comoção que extraímos também novas forças para o viver intensivo, pleno, esteticamente vivenciado, eticamente presente.
Toda essa fala é para dizer que estamos aqui diante do prazer, do gozo, daquilo que nos seduz. Experimentar arte, seja criando, seja consumindo, é uma resistência a toda forma de opressão, medo, cortes e censuras. O fazer artístico é, também, um caminho terapêutico, um processo que podemos deixar fluir, atravessando-nos e fazendo-nos atravessar, criando novas geografias, histórias, filosofias, matemáticas, todas as disciplinas dançando de mãos dadas no baile da vida.
Camilo Mota é psicanalista e terapeuta holístico, editor do Jornal Poiésis, membro da Academia Araruamense de Letras.