- Camilo Mota
A VIVÊNCIA NÔMADE DO SAGRADO

Camilo Mota
A experiência do sagrado resulta de uma composição múltipla, que envolve a percepção e a vivência individual, os aspectos do registro social daquilo que é comum ao humano, e a própria essência daquilo a que se atribui o dom de ser considerado espiritual. Essas três linhas possuem características próprias e interagem entre si. Esse breve texto pretende, então, abordar alguns aspectos desse encontro, a partir da relação que se estabelece entre elas segundo dois caminhos: o nômade e o sedentário.
Todo ser humano, em algum momento de sua trajetória de vida, passa por vivências que o tocam de uma maneira peculiar, tangenciando uma força que é identificada como espiritual. O encontro com o imediato dessa essência pode configurar uma epifania, um êxtase, ou um pequeno insight. Pode acontecer numa caminhada junto a natureza, num momento de meditação, na leitura de algum texto, numa viagem psicodélica, ou ainda a partir de algum evento especial e significativo. O resultado disso se inscreve na memória, cria um registro numênico, que, no campo perceptivo, pode ser sentido em forma de imagem e registrado como linguagem. Esse comum presente em cada uma das experiências individuais é, de alguma forma, reunido no comum da sociedade humana, e gera campos de identificação, que por sua vez formam grupos (religiões, seitas, filosofias, etc.) aos quais aderimos na medida em que percebemos que ali pode se encontrar algo que foi vivenciado no campo do sujeito.
Esse encontro entre o que percebo como espiritual em mim, o registro de representação que faço, e o comum contido num grupo que teve experiência semelhante, conduz a duas possibilidades de vivência: sedentária ou nômade.
Numa conexão sedentária, há uma fixação entre o sujeito espiritual e o grupo a que adere e do qual passa a ser uma força de vínculo. Vincular-se a uma doutrina, por exemplo, corresponde a assumir para si o comum que aquela denominação incorpora. Nesse processo de sedentarismo, o sujeito estagna naquele ponto e passa a adaptar a sua vivência pessoal à vivência do grupo, abrindo mão de seu desejo e de toda diferenciação que sua experiência individual lhe trouxe. Muita gente, com certeza, se sente bem quando encontra esse tipo de vínculo, ainda que precise se assujeitar a comandos e crenças que não necessariamente fazem parte da sua própria experiência de vida. O problema é que nem sempre a pessoa percebe o processo a que está submetida, e tenta a todo custo se adaptar, mesmo à custa de sentimentos de culpa, de decepções com as atitudes dos companheiros de fé, e outras ocorrências no campo dos acontecimentos.
Uma vivência nômade com o sagrado estaria numa linha mais flexível de conduta. O sujeito espiritual não precisa de identificações fixas, mas se permite fazer agenciamentos que lhe forneçam energia para o seu próprio númen, o seu próprio registro do sagrado, ampliando assim a sua vivência espiritual, sem criar vínculos de poder. Nesse campo de autonomia do desejo, as formas, nomes e rituais não importam tanto, mas sim o que se aproveita do encontro com aquilo que ali é representado. Nesse processo, o sujeito não forma vínculos, mas composições, que lhe permitem ir além dos dogmas, permitindo assim criar conexões mais amplas com aquilo que se vivencia. É possível, portanto, perceber que frequentar um culto evangélico, uma missa, um terreiro de umbanda, uma reunião devocional ou um ritual do Santo Daime, não é pecado, porque não há culpa em querer estar próximo do sagrado, independentemente da forma que ele assuma para as pessoas. São apenas caminhos para encontrar o comum que ressoa dentro de si.
A vivência nômade do sagrado também tem seu custo, uma vez que há sempre uma pressão do coletivo para se impor sobre o sujeito, roubando-lhe a sua essência criadora, assim como pode levar a um excesso de buscas, num processo inconsciente de querer se identificar em algum momento para criar uma realidade sedentária.
O sagrado, por sua vez, permanece em seu movimento imanente. Independente das crenças criadas pelos seres humanos, ele flui como uma energia sempre presente, sempre à espreita de tocar um coração sensível. Às vezes toca de maneira tão intensa, que se formaliza numa pessoa que se torna um símbolo desse processo. Nesse ponto encontramos os grandes educadores espirituais da humanidade (Jesus, Buda, Maomé, Bahá’u`lláh, Krishna, etc.).
Esse sagrado não tem nome, não tem dono, é um fluxo puro de intensidade criadora. Poderia ser chamado de nous, tao, nagual... tudo aquilo a que não se nomeia, mas que se pode sentir, como uma brisa, um vapor, um cheiro, e no entanto, não é nada disso. Esse vazio de onde flui é a essência de toda experiência espiritual, que não está fora do ser humano, não transcende a realidade, mas faz parte dela. Se vamos formar vínculos ou composições é uma questão de escolha. E cada um tem a sua.
Camilo Mota é psicanalista e terapeuta holístico. Instagram: @camilomota_psicanalista. Site: www.camilomota.com.br