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  • Camilo Mota

As malas da memória e do futuro

“A única oportunidade dos homens está no devir revolucionário, o único que pode conjurar a vergonha ou responder ao intolerável”.

(Gilles Deleuze)**


Ainda que 2020 esteja sendo um perturbador de nossa noção de tempo e espaço, estamos novamente diante de um limiar. O ano de 2021 surge num horizonte de incertezas e nos convida a novos pensares (e pesares, infelizmente), mas trazendo consigo o signo das mudanças que todo final de período anuncia.


O mais perturbador talvez seja justamente essa indefinida fronteira que criamos em nosso imaginário. Diante da incerteza do porvir, o ano novo se apresenta como uma fonte de angústias, apreensões e desafios insólitos. Como comemorar um novo ano diante de quase 200 mil brasileiros mortos em virtude de um vírus ainda sem controle? E mais, o que avaliar daquilo que vivenciamos em 2020, e que planejamentos fazer se os planos parecem estar se sobrepondo uns aos outros numa espiral surrealista onde se misturam desejos e interdições?


No entanto, diante de acontecimentos tão imprevisíveis (ou nem tanto), eis que temos aquilo que todo limiar ou fronteira nos desafia – ultrapassar seus limites, romper o estabelecido, mudar e se mover rumo ao devir. Ao nos aproximarmos de 2021, podemos, então, retomar nossos próprios conceitos e valores, ressignificar nossas fronteiras, permitir ver a si mesmo como um fluxo de subjetividades em movimento. Pois, se olharmos atentamente, perceberemos que cada um de nós é múltiplo em seu próprio devir, e está constantemente, diariamente, frente a novos limiares e fronteiras. Por que esperar um novo ano para compreender o fluxo das mudanças quando, na verdade, todo dia é tempo de ultrapassar fronteiras, desatar nós, desfazer malas, criar outros caminhos, outras possibilidades?


Esse desafio criativo está no centro daquilo que tomamos para nós mesmos como nossa ideia de sujeito. Somos, a todo instante, manipulados por informações que nos dizem quem nós devemos ser, como devemos agir, o que devemos pensar, e nos deixamos esquecer de quem realmente somos, de que componentes somos feitos e que potência criativa habita em nós para revelar nossa própria força desejante. A internalização desse suposto sujeito social vai nos colocando a cada momento diante da angustiante tarefa de sermos o que não somos. Então, o que somos e desejamos? Como sair dessa constante rota de colisão entre a subjetivação e a homologação da homogeneidade coletiva?


Não temos fórmulas prontas, mas sabemos reconhecer que a todo momento nos defrontamos com limiares e fronteiras, espaços geográficos e humanos que precisam ser ultrapassados à custa de nosso fragilizado e consumido Eu. O desafio é atravessar os territórios, iniciar novas viagens a cada novo encontro.


Ao longo da vida aprendemos a preparar as malas para a viagem. O problema é que nos apegamos às malas e esquecemos por que estamos viajando. Se é inverno, colocamos na mala roupas para o frio. Quando chega o verão, precisamos de roupas mais leves, mais frescas, e assim colocamos em nova mala as roupas de que precisamos. No entanto, continuamos carregando a mala de roupas de inverno. E o peso aumenta. E novamente chega outro inverno, e pegamos novas roupas de frio e colocamos numa terceira mala. E assim vamos carregando nossas memórias, nossas vestimentas, carregando coisas que nem precisamos mais.


A cada novo limiar, é preciso desfazer as malas, limpar os dejetos, reconhecer os desejos e usar a potência criativa de que somos feitos. Talvez seja esse o significado de darmos atenção a nossa criança interior. Esse menino ou menina que um dia olhou o mundo pela primeira vez com espanto, e olhou cada primeira vez com outro espanto. A vida é uma surpresa, não importa se boa ou ruim, mas que seja signo de vida, de vitalidade, de criação a que estamos todos sujeitos no correr da existência.


Almir Sater e Renato Teixeira, na canção “Espelho d’água”, dizem


“Tudo é um rio refletindo a paisagem Espelho d'água levando as imagens pro mar Cada pessoa levando um destino

Cada destino levando um sonho E sonhar é a arte da vida Sonhar nas sombras de um jardim Nas noites de lua que não tem fim”


Os rios não se limitam por fronteiras adiante. Seguem rumo ao oceano de onde também surgiram no fluxo constante das águas. Há as margens, no entanto, e mesmo estas, ainda que fronteiriças, estão sempre mudando, como mudam as águas que fluem desde a nascente. A vida é este fluxo que nos leva sempre a um novo encontro para podermos ser aquilo que realmente somos, cumprindo nossa certeza de estarmos vivendo nossa individuação como um processo em constante renovação.


As malas podem dizer de nosso futuro. Se estiverem leves, podemos até colocar um par de meias a mais ou ainda um casaco para nos proteger nos dias frios. Mas é sempre importante saber deixar um espaço vazio, uma linha de fuga, um tempo destinado a acolher o novo, o inesperado devir. E também podemos doar todas as roupas que tivermos, e andar nus como viemos ao mundo. Vazios de tantas certezas compradas na feira livre do capitalismo. Assim sentiremos a brisa anunciando a primavera, e poderemos nos deixar banhar no rio sem a preocupação de sermos observados. Estaremos livres, simplesmente. E poderemos pegar uma mala, mais adiante, colocar umas roupinhas leves e viajar para atravessar outras fronteiras.


*Camilo Mota é psicanalista, terapeuta holístico, editor do Jornal Poiésis, membro da Academia Araruamense de Letras.

**”Controle e devir”. In: DELEUZE, Gilles. Conversações. Trad. Peter Pál Pelbart. 3ª ed. São Paulo, Editora 34, 2013.

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