- Camilo Mota
INDEPENDÊNCIA E COLONIALISMO

Camilo Mota
Marcos históricos são importantes para revisitarmos conceitos, processos e inserirmos novas possibilidades de construção de realidade. Os 200 anos da data estabelecida como a proclamação da Independência do Brasil, em 7 de setembro de 1822, nos aparecem, então, como uma encruzilhada na qual podemos nos sentar e olhar onde estamos, de onde viemos e para onde vamos. Que deslocamento há nessa confluência de momentos que passam por constantes transformações, por rupturas e, claro, por conservações?
A proposta deste artigo passa por esse desafio: olharmos para o passado, apreendermos o presente, e lançarmo-nos em direção a um porvir, ou a um devir que possa, quem sabe, evidenciar a singularidade deste território a que denominamos Brasil, mas que já foi Pindorama, Terra de Vera Cruz e, quem sabe, tantos outros nomes imaginados para descrever a diversidade de uma região do planeta que ainda tem muito a se revelar, a se mostrar, a se conhecer.
Uma questão para nos provocar um pouco nesse dia poderia ser: De que independência estamos falando? Econômica? Política? Imaginária? Cultural? Afinal, e de maneira a ir além na provocação: será que o território Brasil já não era independente antes da chegada dos primeiros europeus portugueses? Numa terra sem Estado, a quem se submeter senão às próprias forças do território, ao campo espiritual das florestas e matas? O homem selvagem, no sentido macro histórico proposto por Deleuze e Guatarri em seu O Anti Édipo, faz da terra o seu corpo imóvel, de onde tudo emana e para onde tudo volta. Os muitos povos que habitavam este chão em 1500 eram sociedades contra o Estado, no dizer de Pierre Clastres.
A chegada dos portugueses inaugura a colonização, institui um novo corpo onde se registram as leis: a coroa, o rei, o representante de Deus na terra. Colonizar é uma forma de impor ao outro a sua verdade, e assim foi feito. Uma língua estrangeira que se sobrepõe às locais; uma concepção de Deus e de religião que se diz a mais avançada de todas (o cristianismo) e que precisa ser obedecida sob pena de se ir para um inferno imaginário; um modo de produção em que o capital e a mercadoria instituem o valor de troca no lugar do valor de uso; uma cor de pele que é padronizada como perfeita e imaculada, além de representante daquilo a que se pode chamar de ser humano, enquanto outras peles são tratadas como animais (basta pensar na ação dos bandeirantes na captura dos índios na mata ou a crueldade da escravização de povos africanos para servir de força econômica na colônia, apenas para citar as evidências mais óbvias de um pensamento marcado pelo sectarismo, pela centralização de um saber único que precisa acabar com as diferenças para justificar a si mesmo).
Quando falamos de uma independência promulgada em 1822, devemos ter em mente que, apesar dos muitos levantes e insurgências populares ocorridas nos séculos anteriores, a institucionalização do reino Brasil foi uma manobra das elites, que criou uma nova configuração política e econômica no campo macro estrutural. O país passa a afirmar o próprio nome e busca alcançar autonomia em relação à coroa portuguesa, mas o pensamento colonial continua presente, e vai continuar presente até os dias atuais. Os modelos seguidos por aqueles que assumem então o poder institucionalizado do primeiro império reproduzem os modos de viver europeus. Assim como muitos outros modelos serão importados de outras terras, numa constante busca de identidade, numa dificuldade de reconhecer o próprio território como agente de criação de realidades autônomas. É assim que toda uma cultura vai sendo importada, e isso é notório na produção literária brasileira daquela época. Mais recentemente, já no século XX, o modelo de idealização de nação muda seu eixo para os Estados Unidos, outra nação de cultura branca e colonizadora. Até que ponto o Brasil quer mesmo deixar de ser colônia?
No meio de todo esse contexto, nos deparamos com a questão da identidade que cada um de nós sente ao nos dizermos brasileiros. O que de comum há que nos move em um sentimento de grupo, de povo, de nação? Estamos entendendo que nesta identidade há ainda muito de colonialismo presente até mesmo na próprias relações internas que estabelecemos entre nossos povos? Sim, povos, porque aqui habitam desde os descendentes europeus, como também de comunidades nativas, etnias diversas e com cultura, língua e saberes próprios e que lutam para não deixar morrer sua singularidade, seus costumes, seus conhecimentos.
Aqui cabe um parênteses para citar Eduardo Viveiros de Castro, que faz uma distinção interessantíssima entre os conceitos de indígena e de cidadão:
“Ser brasileiro é pensar e agir e se considerar (e talvez ser considerado) como `cidadão`, isto é, como uma pessoa definida, registrada, vigiada, controlada, assistida — em suma, pesada, contada e medida por um Estado-nação territorial, o `Brasil`. Ser brasileiro é ser (ou dever-ser) cidadão, em outras palavras, súdito de um Estado soberano, isto é, transcendente.”
O antropólogo lembra ainda que o indígena por sua vez é aquele que mantém uma relação direta com a terra em que nasceu. Nesse sentido, todos somos indígenas e, de certa forma, precisamos perceber o quanto tiramos nossa força do solo em que pisamos (de maneira imanente) ou do Estado que nos impõe modelos (de forma transcendente). Mais ainda, diz ele: “Um povo é uma multiplicidade singular, que supõe outros povos, que habita uma terra pluralmente povoada de povos”.
Pensando nisso, basta observar que ainda tratamos os indígenas hoje como os primeiros portugueses quando aqui chegaram em 1500. Abolimos realmente a escravidão em 1888? Para quem ainda não leu, recomendo a leitura do romance Torto Arado, de Itamar Vieira Junior. O quanto cada um aqui também não é responsável por manter viva a força colonial dentro de nossas próprias relações pessoais?
Penso que uma nova independência é necessária. Mas uma independência do modo colonialista de pensar, do modo mercadológico em que estamos submetidos e ancorados, e nos abrirmos para o reconhecimento de que a nossa identidade enquanto nação passa pelo reconhecimento das singularidades e identidades de seus habitantes e dos grupos sociais que ainda lutam para não serem esmagadas pela força de um pensamento hegemônico.
É a diversidade, a diferença, a multiplicidade que nos torna tão singulares em nosso modo de produzir realidade. Precisamos habitar os saberes da floresta e não destruí-la. Conhecer a riqueza das mitologias indígenas, não como coisa exótica, estranha, pagã, mas como verdadeiras componentes e propiciadoras de encontros que irão gerar para nós novos modos de ver o mundo. Recomendo muitíssimo que leiamos autores que representam essas vozes, como Ailton Krenak e David Kopenawa, só para citar dois em mais evidência. É preciso que ouçamos as vozes negras, as vozes femininas negras. É preciso afirmar as diferenças para que possamos reconhecer o que é realmente o Brasil, que tem bossa nova e funk como qualidades, e não como antagonistas. O jovem da periferia que participa de batalhas de rap diz muito mais de sua existência do que qualquer manual de sociologia orientada por saberes eurocentrados. Precisamos, claro, consumir o estrangeiro, devorá-lo amorosamente, numa antropofagia não colonialista, como proposta pelos modernistas de 1922, justamente quando se comemorava o centenário da mesma independência sobre a qual estamos aqui falando.
Daqui a 100 ou 200 anos, que independência realmente desejamos?
Camilo Mota é licenciado em História, psicanalista e terapeuta holístico, membro da Academia Araruamense de Letras.
REFERÊNCIAS
CASTRO, Eduardo Viveiros de. Os involuntários da pátria. In: ARACÊ – Direitos Humanos em Revista | Ano 4 | Número 5 | Fevereiro 2017.
CLASTRES, Pierre. A sociedade contra o Estado: Pesquisas de Antropologia Política. São Paulo: Cosac & Naify, 2003
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O anti-édipo: capitalismo e esquizofrenia 1. Trad. Luiz Orlandi. São Paulo, Editora 34, 2011.