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  • Camilo Mota

O Brasil no 7 de setembro e a sombra do fascismo



Camilo Mota


“Boas ideologias são, pois, como tatuagem ou ideia fixa: parecem ter o poder de se sobrepor à sociedade e gerar realidade. De tanto escutar, acabamos acreditando nesse país onde é bem melhor ouvir dizer do que ver. Temos construído uma imagem tantas vezes sonhada de um país diferente (...), que acabamos nos espelhando nela. Ora, tudo isso pode ser muito bom e vale um retrato. Mas o Brasil é, repita-se, também campeão em desigualdade social, e luta com tenacidade para construir valores republicanos e cidadãos.”

(Lilia Schwarcz e Heloisa Starling)


Um país sempre à procura de uma identidade, de algo que o legitime e o defina. As autoras do livro citado na epígrafe comentam que o Brasil já existia muito antes no imaginário português. O Tratado de Tordesilhas (1494) já anunciava um devir. O que estava ali para ser “descoberto”, desvelado, visto? O que se queria ver? Imagino o impacto desse primeiro contato entre Europa e a população autóctone. E isso me cativa a imaginação e me leva de volta à frase do início do parágrafo. Afinal, o Brasil existe desde quando? Que invenção é essa que até hoje busca se afirmar, ressaltar sua diferença, sua singularidade?


Ao se aproximar o 7 de setembro (e daqui a um ano estaremos na fronteira dos 200 anos de uma independência anunciada e legitimada), retomo para mim um questionamento que passa por essa constante desterritorialização da memória. O que somos como país senão um fluxo constante de avanços e retrocessos, de criações e de mortes, de povos lutando para encontrar um estado comum de existência? E aqui se configura o painel da diversidade: populações originais, portugueses, africanos, imigrantes. E hoje: periferias urbanas, zonas sul, pequenos produtores, monocultores... Isso tudo diz o que somos, não porque vivamos numa democracia racial ou que sejamos cordiais, mas porque ainda não sabemos conviver com a diferença e guardamos pequenos (ou grandes) tiranos dentro de nós (os mesmos que açoitavam escravizados, matavam índios, torturavam nos porões da ditadura ou nas perseguições do Estado Novo, e que agora queimam mendigos, assassinam mulheres, defendem tiranias e milícias).


Esse quadro de tentativa de criar um mito brasileiro de uma nacionalidade patriótica traz consigo os germes de um protofascismo. Sempre que iniciamos um processo identitário no país, corremos o risco de eliminar as diferenças em favor de uma suposta unidade de ação, que diga para todos que o Brasil é apenas um, e não muitos. E a afirmação da diferença é assustadora para esse tipo de pensamento. E o pior: ao desejar a morte, ao querer eliminar o que não se quer ver (índios, negros, pobres, gays, comunistas e por aí vai...), anuncia-se o devir do suicídio, do desejo de também morrer, porque a vida é múltipla, ela não comporta apenas um eixo, apenas uma linha de ação. Nesse sentido, “o fascismo se constrói sobre uma linha de fuga intensa, que ele transforma em linha de destruição e abolição puras” (DELEUZE, GUATTARI, 2012).


O 7 de setembro pode ser uma boa oportunidade para refletirmos sobre que nação é essa com a qual nos identificamos e sobre a qual construímos nosso pertencimento imaginário. Estamos cientes de nossa diversidade e dos encontros possíveis que isso engendrou e ainda engendra em nós? Ou é melhor apostar tudo numa salvação patriótica de um delírio de unidade onipotente, em torno de um líder único que irá nos salvar e que não suporta críticas? Nós mesmos suportamos críticas? Não somos também racistas, feministas, esquerdistas, direitistas, contaminados por “ismos” que nos impedem de ver ao invés de apenas ouvir dizer?


Sim, quero descontruir mitos. Ser antropofágico e digerir tudo, sentindo o sabor das diferenças e aí então sentir em mim que nação é essa e o que ela tem de comum e de incomum. Fascismo e totalitarismo andam de mãos dadas e o país já sentiu isso algumas vezes ao longo de sua história. Esse sentimento de autodestruição faz parte desse Brasil que todos nós fazemos existir e não pode ser aceito assim passivamente. Defender torturadores, sufocar a educação, desprezar a ciência em favor de crenças e superstições, e depois ir às ruas fazer louvores a um país que não existe, no qual só é bom quem aparenta riqueza, pele branca e uma religião oficial, tudo isso é sinal de decadência e não de evolução, porque contribui contra a potência de vida.


Como canta Belchior, “viver é melhor que sonhar”, e hoje, mais do que nunca, é preciso viver, e para isso é preciso enxergar a realidade, conviver com as diferenças e delas extrair forças construtivas e não destrutivas. Podem a isso dar o nome de democracia.


REFERÊNCIAS

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Micropolítica e segmentaridade. In: Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia 2. Volume 3. São Paulo, Editora 34, 2012.

SCHWARCZ, Lilia M.; Heloisa M. Starling. Brasil: uma biografia. São Paulo, Companhia das Letras, 2015.


Camilo Mota é licenciado em História, psicanalista e escritor.

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