- Camilo Mota
O PROFANO FEMININO

Camilo Mota
Noite fria. À porta de uma farmácia, dois homens jovens conversam.
— Esse negócio de feminismo é um conceito do machismo. As mulheres embarcam nessa onda e criam um modo de viver que as afasta dos homens.
— Concordo. É isso mesmo.
— E depois, sabe o que acontece? Elas vão acabar sozinhas, sem ninguém, e reclamando que são os homens que não prestam. E o pior. Sabe o que é pior?
— O quê?
— Vão acabar ficando com outras mulheres. Por isso tem tanta sapatona por aí.
Eu disfarcei meu riso, passei os olhos entre aqueles corpos sentindo o quanto um lugar de fala é colonizado, numa tentativa de manter um estado de coisas que passa longe do entendimento. Há tantas coisas que levam um homem a querer possuir uma mulher como objeto de conquista e submissão, que me questiono se esse fenômeno venha a ser um exercício de falta de empatia ou a expressão concreta de um narcisismo que está presente na alma masculina. Ambas as questões não se excluem. Estão ali simultâneas na construção de um discurso de poder, de autoafirmação da própria fragilidade diante de uma força que não se entende.
Muitas mulheres, atualmente, se referem a um sagrado feminino, num caminho de resgate de uma ancestralidade, de um encontro com o selvagem que as habita, numa dimensão que as leva a outra dimensão no campo dos signos e dos corpos. É uma resposta digna a um outro sagrado que as entronizou na esfera de uma pureza inalcançável, como virgens marias feitas para a maternidade e para a passividade de acolherem o desejo imposto pelo Deus cristão. A obediência a um destino, a fim de darem a luz ao messias. E cada homem que encarna essa mitologia do feminino acaba se sentindo o próprio Deus, que precisa manter a mulher nos eixos de uma idealização passiva e sem senso crítico.
Penso, então, que o diálogo que escutei é o medo latente no homem de se deparar não com o sagrado, mas com o profano feminino. É nessa esfera profana que o corpo existe e se move, na medida em que pode ser descoberto, vivenciado em sua plenitude. Mulheres são sensações em movimento, fluxos que escapam à simples racionalização que tentamos fazer da vida. Freud questionava o queria uma mulher. Hoje talvez possamos dizer que elas querem tudo, que podem querer porque os corpos não precisam ficar aprisionados em gaiolas de ideias fixas. E isso é assustador para quem se acostumou há milênios de uma fala marcada pelo controle dos corpos.
Gilberto Gil expressou tão bem esse efeito da força que emana da mulher quando cantou:
Quem sabe O Super Homem Venha nos restituir a glória
Mudando como um Deus O curso da história Por causa da mulher
Essa mudança de fluxo passa pelo combate ao narcisismo masculino que se apega ao vago conceito de que deve ser servido, nessa elaboração edipiana de desejar consumir a própria mãe como fonte inesgotável de prazer. Um combate que deve partir do próprio homem, para encontrar esse lugar diferenciado dentro de si mesmo. É o tempo de abrir mão do desejo de querer tomar para si todas as atenções, sem perceber que o fluxo feminino é mais do que isso, e que flui, inclusive, dentro dos próprios corpos dos homens.
Enfim, o que existe são corpos que podem ou não fluir no sentido de serem criativos, criadores, inventores de novos fluxos. Nesse ponto, as mulheres estão mil anos à frente, porque já perceberam que podem ir além daquilo que se diz sobre elas. O homem, por sua vez, precisa reencontrar sua potência vital, o seu sagrado e o seu profano, que não esteja limitado à preponderância do falo na cadeia de signos.
Homens e mulheres são forças em movimento, muito mais do que apenas uma sexualidade à deriva. São criadores de si mesmos, de suas singularidades. Para haver o pleno fluxo dessas singularidades, há de se encontrar o comum que permite seu encontro. E isso passa por reavaliações do próprio entendimento que cada um tem sobre seus corpos, seus pensamentos e seus desejos. O encontro não é só possível, como também necessário.
Camilo Mota é psicanalista e terapeuta holístico. Site: www.camilomota.com.br. Instagram: @camilomota_psicanalista