- Camilo Mota
O SENTIMENTO DE FARSA

Camilo Mota
Não é incomum nos depararmos em algum momento da vida com um sentimento de que somos uma farsa. Um caso recente e público bastante interessante é o da cartunista Laerte, numa das entrevistas que concedeu para o documentário “Laerte-se”, em que confessa não se sentir à altura daquilo que os outros parecem enxergar em sua obra. No entanto, a artista, nesse caso, não paralisa sua força criadora, deixando o sentimento apenas flutuar como um fantasma que não a toca em sua produção de desejo.
Por outro lado, o sentimento de farsa costuma ser intenso ao ponto de colocar o sujeito num lugar de impotência, de dúvida e insegurança. Em alguns casos, pode se configurar como uma auto sabotagem, uma tentativa de menosprezar a si mesmo como ser desejante, criando um caminho de rebaixamento das forças vitais. Nesse ponto, seria interessante observarmos como se dá a criação de subjetividade que é moldada pelo ideal do eu.
Na produção intelectual de conhecimento, somos acionados a nos configurarmos de acordo com os padrões mestres de um saber instituído, ou seja, há uma formação social que determina os modos de pensar e de expressar esse pensamento. Desse modo, um engenheiro, por exemplo, vai construir um discurso a partir de uma série de estratos de saber; um psicólogo vai extrair das teorias estudadas outra série de conceitos que passam a ocupar a sua própria língua, dominando-a sob o imperativo dos jargões técnicos. E assim por diante. Passamos boa parte do tempo dos estudos de formação profissional adaptando nosso campo de linguagem a uma série de signos que se tornam determinantes daquilo que somos, criando assim uma subjetividade e uma identidade com aqueles valores ali expressos.
O problema é a contradição que existe entre o domínio das representações, dos modelos, das semiologias dos discursos e os processos de subjetivação, que estão ligados a nossos modos de produção de desejo moleculares. Quando nos encontramos na fronteira entre esses dois polos, surge o sentimento de farsa. Talvez aí esteja um ponto crucial para reconhecermos o quanto estamos nos deixando dominar pela ordem instituída, que nos assalta de forma inconsciente e nos domina no campo do assujeitamento.
A farsa é tão somente um sintoma de nossa impotência em sermos nós mesmos, já que nos colocamos (nos deixamos colocar) num lugar ideal, idealizado, pré-formado para que nele possamos nos espelhar. Uma analisanda, certa vez, me confessou que havia sido convidada para mediar um debate, e ao descrever os demais participantes se colocava nesse lugar impotente, achando que os outros é que tinham domínio daquilo que falavam. Naquele momento, o sentimento de farsa a dominava, pois ela não estava se reconhecendo espelhada em seus pares. No entanto, ela tinha uma potência enorme, uma grande força criativa e desejante que a havia levado justamente a uma posição de destaque naquela jornada intelectual. E foi essa força que ela precisou reencontrar para poder lidar com a liderança que aquele momento exigia.
Superar o desejo de farsa exige reposicionar o seu campo de desejo de modo a perceber o quanto as forças externas estão se sobrepondo à sua singularidade. É importante sentir a farsa, assim como sentimos medo ou raiva, porque ela nos mostra o ridículo que nos tornamos quando tentamos nos cristalizar em formas fixas e pré-moldadas. A partir do sentimento, podemos acionar outras linhas de força singulares que nos levaram a nos conectar com o fluxo daqueles conhecimentos que nos capturaram e dele extrair as forças que nos potencializam. É nesse fluir que podemos encontrar a potência de nossas micro línguas, de nosso jeito próprio de exercer aquilo de que somos capazes no campo social sem perder a riqueza da produção desejante de nossos corpos. Assim como Laerte, é preciso manter-se ativo e criativo, percebendo suas próprias contradições, suas impermanências e suas possibilidades de criar linhas de fuga em meio às linhas duras do jogo social.
Camilo Mota é psicanalista e terapeuta holístico. Instagram: @camilomota_psicanalista
Foto: Randy Jacob