- Camilo Mota
OS LIMITES DA SOLIDÃO

Camilo Mota
Estas são apenas algumas reflexões sobre o processo de entendimento da solidão em relação aos limites que vivenciamos no corpo e na mente. Surgiram durante uma sessão de análise e podem ser úteis para que tenhamos uma melhor compreensão da relação intrínseca que há entre vida e morte, luto e redenção, tempo e memória.
Em primeiro lugar, gostaria de situar o tema dos limites. Corpo e mente são atributos interdependentes, têm natureza própria, mas não estão separados um do outro. Cada qual, no entanto, é limitado em seu processo de existência. O limite do corpo é a própria contingência material: um braço apenas alcança certa distância, um salto pode ser dado até certa altura. Alguns desses limites corporais têm flexibilidade, podem avançar ou recuar, mas sempre nos colocam diante de uma fronteira que não se ultrapassa.
O limite da mente é a capacidade de sentir o infinito e o finito em que está inserida. Ela, ao mesmo tempo em que é percebida no corpo, portanto limitada, vai além do corpo e alcança o inefável. O sentimento de finitude e de infinitude configuram um limite que é dado pelo campo das representações, pelas palavras, pelo que se pode dar nome. Essa mente, no entanto, pode ir muito além do que o corpo é capaz. Ela pode tanto penetrar nas células quanto alcançar estrelas, e ainda conceber Deus. Mas conceber é apenas dar nome àquilo que é inominável, porque se localiza depois do limite. Quando muito, alcança um estado de presença ou de pertencimento a uma força que lhe move, mas que não pode ser dita, mensurada. Experiências meditativas, psicodélicas, êxtases religiosos ou exercícios respiratórios expandem esse campo perceptivo da mente, alargando seus limites, mas sempre alcançará um ponto que não se ultrapassa.
Este ponto, o inalcançável, é a experiência primeira e última de toda existência. É o ponto de encontro com a solidão, com a vivência primordial e singular que nos torna seres únicos, diferenciados de todas as espécies e formas do universo. A solidão é a fronteira, ou o portal através do qual o limite é, ao mesmo tempo, reconhecido e desfeito. Temos assim, no decorrer de nossa existência enquanto seres viventes, dois momentos-chave no qual tocamos esse limite em toda sua intensidade: o nascimento e a morte.
Quando nascemos, quando nosso corpo-mente se desprende do corpo de nossas mães, temos a primeira experiência de solidão: apenas nós sentimos o que é o ar entrando pelas narinas pela primeira vez. Qual a dor, o trauma, a sensação de ser tocado por outro ser, e o contato com a atmosfera, as luzes? Essa vivência é, talvez, a única que realmente nos pertence de alguma maneira, é a que toca o profundo de nossa solidão. Depois disso, somos vividos mais do que vivemos. Somos inseridos na sociedade, nos aprendizados, nas formas e palavras que nos antecederam e que dominam o mundo a nossa volta. Vamos sendo preenchidos como se vazios fôssemos. Mas a solidão ficou guardada, armazenada nalgum canto oculto, nalguma memória, que nunca alcançamos. Afinal, ninguém se lembra de seu próprio nascimento, fora alguns casos em que a consciência é expandida e alcança tais recantos.
A solidão só retorna no extremo da vida. A morte é o momento de reencontrarmos o elo perdido e podemos vivenciar por nós mesmos a força da vida que nos compõe. A morte, portanto, não é desconhecida, mas esquecida. É nela que reencontramos o que somos. E isso só pode ser vivido em sua singularidade. “Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é”, como canta Caetano Veloso.
Se a solidão é a essência do que somos em nossa singularidade, quando escapamos, por instantes, dos limites do corpo e da mente, então por que não buscá-la também no intervalo dos extremos? Para isso, seguindo o eixo inicial dessa reflexão, talvez possamos viver a sua intensidade ao escaparmos das forças que nos conduzem para a identificação das formas, e sentirmos dentro de nós mesmos o quanto somos infinitos quando nos deixamos tocar pela própria energia da qual somos feitos, quando respiramos e sabemos que ninguém pode respirar pela gente, quando amamos e ninguém pode amar por nós, quando sonhamos e apenas nós sabemos da intensidade que é enxergar formas que só fazem sentido dentro de nossa própria subjetivação.
Esta solidão não é solitária, não é um convite a se isolar do mundo e viver como eremita. Antes, é justamente perceber-se como força em movimento e transformação, que se deixa modelar ou não pelo que lhe acontece, mas, principalmente, que diz para si: eu sou e não sou, eu inspiro e expiro, eu vivo e morro intensamente a todo instante.
Camilo Mota é psicanalista, esquizoanalista, escritor e poeta. Faz atendimento terapêutico online e também presencial em Araruama-RJ.