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  • Camilo Mota

PÁSSAROS NA GAIOLA E PERVERSÕES

No bairro em que moro, é bastante comum cruzar na rua com alguém carregando algum passarinho na gaiola. São pessoas de todas as idades que trazem essa marca cultural. E até onde percebo, são todos homens. Essa imagem de um ser engaiolado, tendo apenas acesso a alpiste e água, remete a um contexto de perversidade que atravessa toda a sociedade, e que ganha mais notoriedade dentro de um padrão masculino, patriarcal, fálico.


Para além das implicações ambientais que o costume revela, temos aqui um campo do simbólico que permeia toda relação humana, com suas configurações de poder, controle e subjugação sádica. O ato de prender um ser (que por natureza deveria ser livre para voar, se alimentar, copular) é uma extensão de um desejo perverso: não se enxerga a dor do animal, sua privação, sua limitação imposta, mas apenas o próprio gozo de manter para si uma vida para cumprir uma função que pode ser estética ou mesmo comercial. O que mais vale é a posse desse objeto, que confere ao sujeito a sua posição de domínio.


Ressaltei no início do texto a prevalência de homens nessa prática cultural porque o ato simbólico é bastante comum nas relações de casal, onde o homem busca manter para si a primazia sobre o desejo da mulher, não lhe respeitando o espaço, o território, a liberdade. Em alguns casos mais extremos, o próprio homem decide o que a mulher pode vestir ou não, com quem conversar, ou mesmo o que pensar, ou onde trabalhar. O perverso enxerga somente a si mesmo, a própria satisfação, e para isso transforma seu “objeto de amor” numa alegoria, num símbolo do seu próprio espaço sagrado, onde apenas ele tem o direito de agir, podendo para isso empregar a força, como no caso da passagem ao ato das violências domésticas.


Muitas mulheres acabam se tornando pássaros em gaiolas, à espera do alimento e da água, mas sem chance de seguir a sua verdadeira natureza, que é voar e cantar para se perpetuar e não para manter o gozo de controle do outro. A submissão do pássaro engaiolado acaba levando a um grau tão elevado de conformismo que se ele for solto, não conseguirá sobreviver na natureza. Esse medo é notório em muitas relações de casal. Como encerrar uma relação e se confrontar com o desconhecido representado pelo fora da gaiola?


Essa estranha obsessão de controle do outro por uma força coercitiva é muito bem apresentada no filme “Distúrbio”, de Steve Sorderbergh, no qual a personagem Sawyer Valentini se vê perseguida por um stalker virtual e acaba se tornando sua vítima dentro de um hospital psiquiátrico. O processo de controle se inicia nas redes sociais (nossas gaiolas contemporâneas) e dali se transfere para o campo do real, onde a própria ideia de sanidade da personagem é questionada diante das instituições. Sem querer fazer “spoiler”, é bom que se diga que Sawyer se livra do controle perverso. Ela abre a porta da gaiola, mesmo assim vai carregar as marcas desse afeto.


No campo das relações afetivas, estaremos sempre numa disputa interna de desejos. O psicanalista argentino J.-D. Nasio, falando sobre o amor, traz a seguinte reflexão: “O que quer uma mulher? Quer ser amada pelo que é. O que quer um homem? Quer ser amado pelo que faz. Eis duas experiências impossíveis de satisfazer plenamente”. É nesse “entre” um e outro que a relação se faz. Numa relação madura e saudável, ambos são agentes e percebem o seu próprio território e a geografia que precisa ser percorrida para não colonizar o outro. As relações são estradas de mão dupla por onde se viaja com direitos a encontros e desencontros, mas sempre mantendo a consciência dos destinos.


*NASIO, J.-D. 9 lições sobre arte e psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 2017, p. 54)


Camilo Mota é psicanalista e terapeuta holístico (www.camilomota.com.br)


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