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  • Camilo Mota

Se fazendo de morto

Camilo Mota





Camilo Mota


A concatenação de investigações policiais alimenta a imaginação humana como um ritual de revelações sobre o real. Não é em vão que os livros de Conan Doyle e Agatha Christie sejam tão cativantes para o espírito investigativo. Sherlock Holmes e Hercule Poirot transitam naquele limiar entre o real, o simbólico e o imaginário, capturando nosso desejo por desvendar aquilo que nós mesmos ocultamos. Os recentes noticiários na TV, em junho de 2021, sobre a perseguição ao foragido Lázaro nos dão bem a ideia do quanto ocultamentos, avistamentos e perseguições são caros ao espírito humano.


O cinema é rico em personagens que encarnam esse processo de desvelamento do real a partir de um núcleo policial. E chegamos a um filme como “Se fazendo de morto” (“Je fais le mort”), produção franco-belga de 2015, com direção de Jean-Paul Salomé. A história gira em torno de Jean (François Demien), um ator fracassado, apesar de premiado em sua estreia no cinema. Em busca de um novo papel que o redima, acaba sendo contratado para representar o morto na reconstituição de um crime pela polícia numa estação de esqui. Com humor delicado e um roteiro que tece bem os rumos do mistério a ser revelado, a obra diverte e prende o espectador com bom ritmo de enunciações narrativas.


Além de ser divertido e das boas interpretações de Demien e de Géraldine Nakache (que vive a juíza Noémie Desfontaine), “Se fazendo de morto” permite leituras que apontam para o inusitado que o devir faz sobressair. O protagonista redimensiona o papel do virtual no mundo real, por exemplo. Por ser ator, ele assim age quando deveria ser apenas um “morto”. Talvez mesmo a condição de morto, de marginalizado, de oculto ao sistema estabelecido, traga para Jean a sua condição de devir detetive. Para viver plenamente o personagem exigido, ele se torna o inverso, se transmuta numa outra força, que traz consigo os elementos necessários a qualquer bom processo investigativo (como numa análise psicanalítica, em que o discurso vai se abrindo para a percepção do que está por trás, do que está em relação, daquilo que há de ser apreendido).


Numa outra dimensão de abordagem, seu perfil inicial é de um sujeito um tanto mitômano, arrogante, masculinizado numa falocracia dominante, sempre em confronto com forças femininas (uma diretora de cinema no início da película, a própria juíza no cenário da reconstituição do crime). E é justamente num momento de fragilidade, de vulnerabilidade, que numa simples fala ele demonstra sua força de passagem para outra condição, e se rende ao feminino, ao cuidado. É quando a personagem da juíza, em sua alteridade em relação ao protagonista, refunda seu papel significante. A relação masculino-feminino tem muitas outras nuances a serem desveladas. E ambos os personagens estão sob o signo do devir, se permitem mutações que os conduzirão a novos rumos de vida a partir do desvelamento final do crime.


“Se fazendo de morto” está em cartaz na plataforma FilmeFilme (www.filmefilme.com.br), uma curadoria brasileira de cinema que prima mais pela qualidade que pela quantidade de experiências audiovisuais.


Camilo Mota é psicanalista, poeta, membro da Academia Araruamense de Letras e editor do Jornal Poiésis (www.jornalpoiesis.inf.br)

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