- Camilo Mota
SOMOS SERES PASSANTES

Camilo Mota
Passado, presente e futuro são aspectos de uma mesma realidade: o tempo. Na escala dos valores contemporâneos, somos coagidos a pensar e a viver de acordo com uma cronologia fictícia, que nos aponta para uma sucessão de horas, minutos, segundos, que precisam ser preenchidos em favor da produtividade. Com isso, vamos nos conectando ao mundo à procura de nos ocuparmos de alguma coisa e acabamos presos a uma roda produtora de angústia: nunca temos tempo suficiente para fazermos aquilo que desejamos. O próprio desejo fica refém de uma ordem externa (o tempo cronológico) e perde a sua capacidade de atualização, de entrar em devir, de acontecer no ato próprio da existência presente.
Nesse emaranhado de um tempo capturado pelas forças de produção, nos apegamos a um ou outro aspecto, principalmente a fixação que se estabelece com o passado ou com o futuro. Esse descolamento em relação ao presente, amplia as condições para o desenvolvimento de depressão e ansiedade por conta da paralisação da força criativa do desejo em favor de uma necessidade de conservação. Escapar desse processo de sedentarização e retomar o fluxo nômade da pulsão de vida é um dos caminhos que se abrem, por exemplo, num processo terapêutico. Quando percebemos que somos seres passantes, seres de passagem, e nos conectamos com o tempo como um todo, e não como uma parte, reencontramos o propósito da vida que é criar-se a si mesma.
O que é, então, viver o presente? Uma maneira de entender isso é perceber que cada um de nós está em processo, somos acontecimentos, estamos acontecendo. Quando respiro e tomo consciência desse respirar, me conecto com o corpo e o percebo como uma potência de vida. Cada inspiração e expiração é uma sucessão contínua de trocas e transformações. Todas as células do meu corpo estão trabalhando, absorvendo oxigênio e centenas de elementos, expelindo outros tantos. Podemos aí contemplar os pensamentos e outras percepções, como o som que o corpo faz enquanto vive (as batidas do coração, o atrito do ar nas narinas, a pele sendo tocada pela roupa que vestimos...). E isso tudo passa. O presente nunca pode ser apreendido, apenas vivenciado enquanto acontece. O presente é apenas uma grande fábrica de passados.
Somos, portanto, muito mais passados e passantes. Resta-nos da experiência o registro que dela fazemos no extenso campo da memória. Se pararmos para pensar um pouco, perceberemos que apenas o passado permanece e nos acompanha. No entanto, ele não é fixo, não é estanque, porque enquanto estivermos vivendo, estaremos construindo mais e mais passado. Daí a importância de viver plenamente o momento presente para que possamos ter passado pela vida com a sensação de realmente termos vivido. Viver o presente é saber fazer bom uso das forças que estão se combinando para formar a vida. Essas forças geram estresse, atritos, e também amor e encontros felizes. É dessa combinação que podemos extrair a energia necessária para manter o desejo em atividade.
Uma maneira de cultivar de maneira saudável as memórias, os registros dos acontecimentos, é criar para si um estado de gratidão. Saber agradecer pela vida que recebemos a cada instante como uma dádiva, um milagre ou um mistério. Podemos lembrar das coisas boas e das coisas ruins que nos aconteceram com o mesmo valor, às vezes até com nostalgia, mas uma nostalgia alegre, pois que alimentada pela gratidão. Quando nos apegamos a apenas um acontecimento passado, um acontecido, seja ele feliz ou triste, tentamos revivê-lo como uma realidade presente, estaremos construindo uma ponte para o sofrimento. Nalguns casos, para um viés patológico a que se denomina depressão. É como se o desejo se deslocasse de sua potência criadora para a ficção de uma fantasia em que se imagina construir uma ponte para chegar a outra margem, mas a margem se afasta à medida em que a ponte é construída. Alguns desistem no meio do caminho e até se matam por conta disso.
O desejo criativo aponta para o futuro, mas este não existe como imaginado, como idealizado, porém como devir. Nunca sabemos para onde estamos indo. Supomos que estamos indo na direção certa, e até acreditamos nisso, o que ajuda a fazer planos, a fortalecer a esperança. Mas o futuro nada mais é do que resultado do passado que construímos, e o passado, como dissemos, é armazenado na experiência que temos com o presente. Parece confuso? Nem tanto. É só uma maneira de dizer que somos ao mesmo tempo passado, presente e futuro sendo criados simultaneamente.
A ansiedade aparece nessa relação distorcida com o futuro justamente porque se cria um caminho de aceleração sem que se respeite o ritmo do próprio desejo, que só pode acontecer no aqui-agora do caminho que ele mesmo está abrindo em meio às composições que faz para ser livre. Respeitar o próprio desejo, reconhecê-lo e fazê-lo fluir está na base de uma relação com a potência de vida que ele exerce. Que seja alegre, que seja uma obra de arte em constante elaboração, depende de nós mesmos.
Camilo Mota é psicanalista, terapeuta holístico, esquizoanalista, escritor. Instagram: @camilomota_psicanalista. Site: www.camilomota.com.br
Foto: Alexandar Todov