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VACINAS, DOENÇAS E METÁFORAS



Camilo Mota


“Todas as doenças metaforizadas que atormentam a imaginação coletiva levam a uma morte sofrida, ou se imagina que o façam. Não basta a doença ser letal para que cause terror.”

(Susan Sontag)


Há poucas décadas, a humanidade se via às voltas com o assombro de uma nova peste. A AIDS aparecia como uma ameaça à civilização, gerando desconforto, apreensões, preconceitos e movimentos em torno de um conhecimento que proporcionasse o alívio, o alento, a eliminação de um novo inimigo. A filósofa americana Susan Sontag chamava a atenção para o modo como lidávamos com as doenças abordando-as de uma maneira metafórica, ou seja, atribuindo a elas “outros nomes”, outras configurações que as retirassem de seu aspecto significante, traduzindo-as de maneira a enfrentá-las sob um novo viés. Mais especificamente, por um viés bélico. A doença é o inimigo que precisa ser combatido, criando assim uma guerra metafórica.


A pandemia da covid-19 reacende a questão. Há toda uma mobilização para criar armas de combate a esse inimigo invisível, o coronavírus, capitaneadas pela metodologia científica. O uso de máscaras e o distanciamento social representam as trincheiras. As vacinas, os antimísseis que evitam estragos maiores. Não impedem o ataque, mas protegem quanto a uma destruição que poderia ser ainda maior. Esse processo nos leva a perceber como se dá essa metodologia de conhecimento, a ciência. Trata-se de um debruçar-se sobre a realidade, colhendo-lhe informações, baseadas em evidências, com levantamento de hipóteses e experimentações que necessitam de validações. Nesse sentido, o conhecimento científico nos tempos atuais é uma construção coletiva. O que se descobre num determinado laboratório precisa ser validado por outras instâncias, que façam suas observações, que validem ou refutem seus resultados. É assim que se estabelece a função de remédios e vacinas. Dizer isso é chover no molhado para quem está habituado ao sistema de validações científicas.


No entanto, ainda nos surpreendemos com o grande número de pessoas que preferem sair das trincheiras e se deixar alvejar pelo inimigo, como se fossem invisíveis aos projéteis-vírus que fluem por toda parte. Pais que temem vacinar os filhos, adultos que inventam artimanhas para justificar seu medo de receber no corpo um elemento químico desconhecido, como se realmente tivesse condições de avaliar os danos desse contato tão íntimo com a realidade. Insisto na palavra “realidade” para confrontá-la com o “imaginário” que parece dominar as instâncias do pensamento coletivo.


É desse imaginário que emerge uma abordagem negacionista. A mais básica das defesas do Ego é a negação. É compreensível, pois, que as pessoas não queiram aceitar a condição de que são vulneráveis, frágeis e estão sempre diante da morte com sua presença constante. Uma maneira de fazer essa “proteção” é dizer que a ameaça não existe, que esse Eu é forte o suficiente para encarar o mundo, mesmo que para isso esteja fechando os olhos e escondendo a cabeça sob a terra, como avestruzes paranoicos. Ou criar soluções miraculantes, depositando sua fé no transcendental que venha lhes salvar dos terrores demoníacos da terra.


A negação ganha aqui novas configurações. Não é apenas negar, mas sobretudo “imaginar” um mal ainda maior. Seria uma dupla negação? Há uma captura paranoica que tende a um processo alucinatório que se torna mais intenso quando estimulado por notícias falsas que percorrem redes sociais e aplicativos de mensagens instantâneas. Acreditar em “fake News” é o novo modelo de proteção do Ego contra a metáfora bélica que está em curso. Ao invés de combater o vírus, decidem combater as vacinas.


Outro efeito curioso desse processo é o quanto a covid-19 constrói novos agenciamentos das pessoas com a sua realidade pessoal e coletiva. Tenho ouvido relatos, no consultório, de analisandos que tiveram mudanças significativas em seu modo de pensar e agir a partir da experiência com a contaminação. Alguns resgatam suas próprias vidas, avaliando ações do passado e promovendo rupturas necessárias para novas construções de realidade. O vírus como agente de redenção. Outras, no entanto, vivenciaram a vulnerabilidade de maneira tão intensa, que ainda se recuperam dessa sequela, desenvolvendo outros sintomas, como os transtornos de ansiedade.


A construção coletiva do ideal bélico traz ainda outra consequência, talvez mais sutil, porque pouco revelada. O quanto algumas pessoas têm medo de dizer que estão ou que tiveram covid. Há uma vergonha social implícita. Ser contaminado pelo coronavírus é um modo de se identificar com o inimigo e não com o exército que o combate. Quando um vírus se aloja no corpo, a pessoa se torna diferente. Toda doença carrega consigo essa marca da diferenciação. Isso é aterrador quando pensamos que o corpo social é moldado por um universalismo de intenções, ou seja, são criados modelos ideais que nos dizem como devemos ser, agir, pensar e nos comportarmos. Todos devemos ser iguais perante o Grande Outro. E o adoecimento provoca esse sentimento de apartamento, disjunção, diferenciação.


Todos somos cúmplices da realidade que criamos. A presença de um vírus não é uma punição divina intencionada para fazer a humanidade sofrer e expiar seus pecados. É resultado da maneira equivocada como lidamos com a realidade. Porque, afinal, o modo de existir gerenciado pelo Capital cria seus monstros imaginários e libera os reais. O real sempre nos assombrará enquanto não o encararmos como parte de nós. Para sobreviver, é preciso gerar potências criativas que nos levem a lidar com a realidade de maneira mais leve, mais integrada, e mais intensiva, de modo que possamos fazer composições realistas com o mundo, e não imaginárias. A imaginação tem sua função de criar, de inventar desvios necessários (como a arte e a religião, por exemplo), e nos move em sentidos mais amplos. Mas não pode se fixar como projeto de vida, como uma linha dura que nos leve as nos perdermos num delírio esquizofrênico.


Camilo Mota é psicanalista e terapeuta holístico. Mais textos do autor você encontra no site www.camilomota.com.br/blog e no Instagram @camilomota_psicanalista.



REFERÊNCIA

SONTAG, Susan. Aids e suas metáforas. São Paulo, Companhia das Letras, 1989, p. 46.


Foto: Mufid Majnum

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